martes, 7 de abril de 2020

Por que uma abordagem focada na justiça social para orientação profissional e de carreira (OPC) é importante na época do coronavírus:

Traducción NO oficial por Ps.Amilkar A. Brunal.Disponible en https://revistaorientaccion.blogspot.com/2020/04/por-que-un-enfoque-centrado-en-la.html
 Red latinoamericana de Profesionales de la Orientación (RELAPRO)

Relapro@gmail.com

 Reflexões a partir da América Latina – O caso do Brasil
Marcelo Afonso Ribeiro
(Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil)

Tristram Hooley (Universidade de Derby, Reino Unido), Ronald Sultana (Universidade de Malta, Malta) e Rie Thomsen (Universidade de Aarhus, Dinamarca) cumpriram importante papel ao incluir o campo da orientação profissional e de carreira (OPC) no diálogo emergente e urgente da crise mundial gerada pelo coronavírus em seu texto “Por que uma abordagem focada na justiça social para orientação profissional e de carreira é importante na época do coronavírus?”[1][2]. Afinal duas dimensões centrais da vida estão sendo interpeladas radicalmente: os projetos de vida e os projetos de trabalho de todos/as, sem exceção, estão em xeque. Estados e nações buscam compreender o fenômeno em curso e alguns parâmetros para esta discussão ficam explicitados. Pretendo fazer uma breve e inacabada discussão semelhante aos/às autores/as, entretanto, com um olhar de alguém que vive em um contexto de desigualdade social, informalização do trabalho e baixo suporte do Estado, como o contexto do Brasil, a fim de traçar pontos comuns e pontos locais da questão abordada. Elegi quatro pontos centrais para a discussão realçados por algumas das consequências sociais e econômicas geradas pela pandemia.

Em primeiro lugar, as disputas entre modelos de Estado com uma maior ênfase em políticas de desenvolvimento social versus modelos com uma maior ênfase em políticas de desenvolvimento econômico com gradações entre estes extremos, conforme já vinham discutindo Ricardo Antunes[3] no Brasil e Alain Touraine na França[4]. Dilema, este, que se constrói a partir de dois interesses em confronto: de um lado, a globalização e o produtivismo (desenvolvimento econômico), e, de outro lado, a defesa dos direitos humanos básicos (desenvolvimento social), entre eles, o direito ao trabalho e, preferencialmente, um trabalho decente, como preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT)[5]. Esta questão emergiu no falso dilema entre as ações de combate à pandemia que deveriam pensar primeiro na economia e depois na saúde das pessoas, ou vice-versa, não existe economia sem saúde e saúde sem economia. A questão da quarentena, do isolamento social e do distanciamento social como estratégias de combate à pandemia está no centro deste dilema. Isto reacende a questão de quem trabalha para quem, ou seja, os/as cidadãos/ãs devem trabalhar para garantir o pleno funcionamento do Estado ou o Estado deve trabalhar para garantir o pleno bem-estar das pessoas? Isto coloca em xeque a função do Estado: quem trabalha para quem? Concordo com a premissa de que, no sistema capitalista, sem desenvolvimento econômico não há desenvolvimento social, mas sem desenvolvimento social, o desenvolvimento econômico não se sustenta, ou seja, as pessoas deveriam ser, sempre, o fim direto de qualquer ação estatal (no contexto da pandemia, a garantia da saúde vem em primeiro lugar associada a ações de garantia de renda mínima para todos/as). Neste ponto, a adoção de políticas neoliberais em contextos de desigualdade social acentuada, como o Brasil, impede qualquer possibilidade de emancipação e ascensão a partir do trabalho para a maiorias das pessoas[6]. No campo da OPC, a utilização de estratégias de visem, exclusivamente, ajustamento ou adaptação são, de forma direta, estratégias que impedem qualquer possibilidade de emancipação social, pois dizem para as pessoas o que a sociedade destinou a elas, sem oferecer a opção de tentar transcender este lugar socioeconômica e culturalmente definido. Neste sentido, a crise que a pandemia instaurou se mostra como uma ótima oportunidade de questionar o normal vigente e começarmos a pensar qual será o novo normal. Neste ponto, parte da construção do novo normal seria a desconstrução da institucionalização e consolidação em andamento, inclusive jurídica[7], de dois grupos antagônicos de pessoas: as que merecem direitos (membros plenos da sociedade) e as que devem se contentar em trabalhar sem direitos (membros não plenos da sociedade), com um grupo transicional que pleiteia ser membro pleno da sociedade. Nesta linha de raciocínio, direitos seriam privilégios para alguns/mas (os/as mais qualificados/as e com posição social alcançada pela meritocracia), enquanto a grande maioria não teria direitos e deveria se contentar com uma vida precária e um trabalho precário [e.g., migrantes na Europa e metade da PEA (População Economicamente Ativa) no Brasil), legitimando a injustiça social fundamentada no argumento de que “vocês não são como nós, por isto podem ser explorados/as”, conforme salientam Monica Budowski e Sebastian Schief da Universidade de Fribourg (Suiça)[8]. Discordo deste posicionamento e acredito que todos/as devem ter acesso aos direitos fundamentais e o Estado deveria garantir condições mínimas para tal. Concordo com Hooley, Sultana e Thomsen de que o trabalho do orientador/a é um espaço privilegiado para auxiliar na construção deste novo normal, principalmente ajudando as pessoas a desafiar e transcender os mecanismos dominantes neoliberais, contribuindo na consciência crítica de que a individualização da proteção social é impossibilitada para a grande maioria da população mundial, e que a OPC tem que começar a cuidar dos/as trabalhadores/as informais e precarizados/as (dos/as que não tem nem emprego, nem trabalho decente).

Em segundo lugar, as disputas entre modelos sociais, políticos e culturais, principalmente entre modelos ocidentais[9] e modelos asiáticos[10]. Nestas disputas estão em jogo o controle e a tutela que o Estado deve exercer numa dicotomia entre liberdade individual e controle estatal, com gradações entre estes extremos, ou seja, pouco controle estatal com maior responsabilização das pessoas por suas vidas (neoliberalismo) versus maior controle estatal (e.g., modelo norte-americano versus modelo chinês). No campo da OPC isto aparece com as questões da liberdade de escolha e da autonomia. E temos que nos fazer algumas perguntas. A primeira pergunta é: O que seria uma liberdade de escolha? Qualquer tentativa de resposta a esta questão coloca em jogo modelos culturais coletivistas versus modelos culturais individualistas. Jean Guichard, do CNAM (Conservatoire National des Arts et Métiers, França)[11] já nos alertava que qualquer intervenção em OPC deveria introduzir um dilema ético na questão da liberdade de escolha, e convidar a todos/as a pensar na “percepção do preço para a humanidade de nossas conquistas pessoais”. No contexto da pandemia, não distanciar-se socialmente pode gerar um número maior de mortes; no contexto do trabalho, não pensar nas consequências e impactos das minhas decisões cotidianas sobre a vida dos/as outros/as e do mundo em geral pode prejudicar pessoas, processos de trabalho e contextos (e.g., a ideia de emprego verde proposta pela OIT[12], definido como um trabalho que preserva ou estabelece a qualidade do meio ambiente, independentemente de sua área de atuação). Este exemplo nos traz a questão da autonomia, ou seja, quem pode ser autônomo/a? Pessoas com capital social e econômico e suficiente para tal, como diria Pierre Bourdieu[13]. No Brasil, por exemplo, com mais de 50% dos/as trabalhadores/as na informalidade ou desempregados/as, a decisão de não trabalhar, não é uma decisão simples, nem exclusivamente pessoal pela falta de autonomia da maioria. Por conta disto, muitas pessoas estão se expondo ao risco de se contaminar e contaminar os/as demais por questões de sobrevivência. Este é um retrato de como a individualização da vida em contextos de desigualdade social, como da América Latina, é uma estratégia que deixa as pessoas em situação precária e de falta de segurança. Desta maneira, penso que saídas individualizadas são ineficazes em contextos socioeconomicamente desiguais, há necessidade de suporte comunitário, social e estatal, o que coloca em xeque o modelo dominante neoliberal, ao mesmo tempo em que, deve-se tomar cuidar para não incentivar ações estatais autocráticas. Retornando ao campo da OPC, Frank Parsons, fundador do campo, defendia que uma orientação não faria sentido se não contribuísse com a emancipação e a transformação psicossocial, e preconizava o princípio do mutualismo como saída ao capitalismo ao apregoar a troca da competição pela cooperação, e da ambição pelo dinheiro pelo consenso e pela humanidade, acreditando que a sociedade deveria ser controlada pelo povo e gerida pelo poder público, em prol do bem-estar do todos/as, o que retoma a definição de público, ou seja, para todos/as em prol do bem-comum[14].

Em terceiro lugar, a necessidade urgente de incluir a discussão do que é trabalhar no centro das intervenções em OPC, em termos de que tipo de trabalho irei desempenhar, qual o lugar do trabalho na minha vida, qual a finalidade do trabalhar para mim, o que espero alcançar com meu trabalho, quais seriam os potenciais impactos do meu trabalho nas várias dimensões da sociedade, e que lugar estaria destinado a mim no mundo do trabalho em função da minha posição socioeconômica e cultural. Em síntese, que lugar eu ocupo nas relações de poder na sociedade e qual a chance de transcendê-lo. Silvio Bock[15] já alertava desta necessidade no início dos anos 2000 em sua abordagem sócio-histórica para a OPC, e Hooley, Sultana e Thomsen reforçam esta tese ao propor a construção da consciência crítica e o auxílio às “pessoas a entender a (sua) situação (política), não apenas a reagir a ela em nível pessoal”.

E, finalmente, dois pontos que gostaria de questionar na argumentação de Tristram Hooley, Ronald Sultana e Rie Thomsen, e propor saídas alternativas para contextos latino-americanos. O primeiro ponto diz respeito a necessidade de ampliação das práticas online e isto esbarra numa questão que estamos vivenciando no Brasil: Quem tem acesso e/ou acesso de qualidade à Internet para ficar online, por exemplo, durante uma aula de 3 horas? Uma boa parte da população brasileira não tem, principalmente a partir de suas casas. Isto coloca um limite às práticas online, que é a questão da exclusão digital. E, o segundo ponto, diz respeito à ampliação da oferta de políticas públicas de OPC e isto esbarra numa outra questão histórica vivenciada no Brasil: nunca tivemos nenhum tipo de política pública de OPC e não parece estar no horizonte do governo brasileiro esta proposta atualmente. Alternativas a este problema, em contextos de baixo suporte estatal e alta desigualdade social, devem vir de estratégias comunitárias e das organizações sociais. Um exemplo é o trabalho desenvolvido por Sergio Rascován[16] na Argentina em comunidades periféricas de Buenos Aires a partir de uma rádio comunitária, ou seja, diante da deficiência digital, podemos lançar mão dos recursos sociocomunitários já existentes, como vem acontecendo nas comunidades de baixo poder aquisitivo no Brasil para o combate da pandemia (por exemplo, pela utilização de carros de som circulando pelas ruas). Como se isolar socialmente se dependo do trabalho diário para a sobrevivência? Comunidades, associações de bairro e movimentos sociais locais vêm criando formas alternativas locais de evitar a disseminação do coronavírus, sustentar a economia local e garantir condições mínimas de segurança e proteção independentemente do Estado que está praticamente ausente nestes contextos. Devemos seguir lutando tanto pela inclusão digital, quanto por políticas públicas de OPC, mas, enquanto isto não se efetiva, temos que considerar que o novo normal dos trabalhos de OPC, se quisermos incluir todos/as, não está nas práticas online, nem a partir de políticas públicas, mas antes, a partir da organização comunitária, que é a organização possível para uma boa parte das pessoas no Brasil, e dos recursos que ela dispõe. Isto não significa que não devemos levar a sério e empreender uma agenda de pesquisa e de experimentação intensa de trabalhos de OPC online, que vem se mostrando urgente diante da realidade da pandemia. Assim, para ter o potencial de emancipação, a OPC não pode ser um trabalho restrito à relação a dois (orientador/a e orientando/a) ou grupal, ela necessita incluir, de forma direta, a comunidade de origem dos/as orientandos/as, não como mera fonte de consulta, mas como cocolaboradora no processo de construção do projeto de vida de trabalho do orientando/a (por exemplo, promovendo grupos de discussão em associações comunitárias com orientandos/as e moradores/as locais).

Em suma, penso que a crise multidimensional gerada pela pandemia do coronavírus é uma excelente oportunidade para reconstrução do mundo e, no caso específico, do campo da OPC, do qual vários/as autores/as vinham assinalando pontos necessários de mudança e que, agora, encontram espaço para potencialmente se efetivarem, diante da tarefa imposta de pensar sobre o novo normal. Cito uma síntese das demandas de transformação OPC que publiquei em 2018[17], como exemplo do projeto colocado ao campo.

1) Enfrentamento da flexibilização, individualização e precarização do mundo do trabalho e das carreiras para atender às demandas sociais e de trabalho contemporâneas de forma socialmente justa.
2) Contextualização das teorias e práticas.
3) Incorporação de novas epistemes em sintonia com os avanços no campo da ciência.
4) Ampliação e diversificação do público atendido.
5) Incorporação das discussões da interseccionalidade de raça/etnia, gênero/sexualidade e classe social nas teorias e práticas em orientação.
6) Incorporação de projetos de transformação social em suas práticas, como Frank Parsons propôs inicialmente.
Este é o nosso desafio atual: aproveitar a brecha criada na sociedade pela pandemia e tentar recriar um normal que tenha todas as pessoas como centro de qualquer ação social e política. Citando Hooley, Sultana e Thomsen: “Em tal situação, precisamos pensar em como podemos tornar o novo normal um mundo mais justo, humano e sustentável”, que possa oferecer OPC para todos/as de forma contextualizada e em diálogo permanente com todos/as.

São Paulo, 5 de abril de 2020



[1] Hooley, T., Sultana, S., & Thomsen, R. (2020). Why a social justice informed approach to career guidance matters in the time of coronavirus. Retrieved from: https://careerguidancesocialjustice.wordpress.com/2020/03/23/why-a-social-justice-informed-approach-to-career-guidance-matters-in-the-time-of-coronavirus/
[2] David Blustein (EUA), igualmente, tem incentivado e coordenado ações através do link: https://lists.purdue.edu/mailman/listinfo/psychologyofworking
[3] Antunes, R. (2015). O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo.
[4] Touraine, A. (2006). Novo paradigma para compreender o mundo. Petrópolis: Vozes.
[5] International Labour Organization (ILO, 1999). Report on decent work. Retrieved from: http://www.ilo.org/public/english/standards/relm/ilc/ilc87/rep-i.htm
[6] Conforme artigo de minha autoria no prelo.
Ribeiro, M. A. (no prelo). Reforma trabalhista: uma análise psicossocial. Revista de Psicologia da UFC.
[7] A chamada Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017) realizada no Brasil é um exemplo disto.
[8] Comunicação pessoal, 5 de março de 2020.
[9] De Masi, D. (2020) Coronavirus anuncia revolução no modo de vida que conhecemos. Extraído de: https://www.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirusanuncia-revolucao-no-modo-de-vida-queconhecemos. shtml?utm.source=whatsapp&utmmedium=soial&utm campaign=compwa.
[10] Han, B.-C. (2020) O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã. Extraído de: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-ofilosofo-byung-chul-han.html
[11] Comunicação pessoal, 24 de maio de 2018.

[12] Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2009). Empregos verdes: rumo ao Trabalho Decente em um mundo sustentável e com baixas emissões de caborno. Resumo. Extraído de: http://www.oit.org/brasilia/publicacoes/WCMS_229627/lang--pt/index.htm

[13] Bourdieu, P. (2002/1971). Esboço de uma teoria da prática. Lisboa: Celta.
[14] Parsons, F. (1894). Our country’s need. Boston, MA: Arena.
Parsons, F. (1894). The philosophy of mutualism. Arena, 9, 783-815.
[15] Bock, S. D. (2002). Orientação profissional: a abordagem sócio-histórica. São Paulo: Cortez.
[16] Rascovan, S. (2018). Orientación vocacional con sujetos vulnerabilizados. Experiencias socio-comunitarias en los bordes. Buenos Aires: Novedades educativas.
[17] Ribeiro, M. A. (2018). Comprensiones híbridas y diálogo intercultural: Dos principios básicos para la construcción de propuestas contextualizadas en orientación y asesoramiento para la carrera. Revista Mexicana de Orientación Educativa15(34), 1-21.

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